Eu leitora

De minha mãe a música
De meu pai a métrica
De mim a poesia


Partindo do que me tornei, isto é, uma poeta, médica e psicanalista, tentarei tecer algumas hipóteses, retratadas como narrativas de minha história pessoal, numa espécie de sistematização convergente para esse futuro que é esse aqui e agora. Além disso, quando se entende que ler, não é tão somente ler livros e mais do que isso é ler como interpretação do mundo, venho esclarecer que julgo essas teorias de formação de leitores muito válidas, isto é, a valorização da família, da infância, dos iniciadores, dos exemplos, da escola, dos professores, e etc., mas penso que são influências complementares de um outro conhecimento que adquiri como psicanalista. Além desse conhecimento penso que o autor Turner, um neurolinguísta, concorda que antes da criança freqüentar a escola e longe de se atribuir toda a formação e responsabilidade aos pais e professores a respeito da formação de um leitor, a criança alberga dentro de si possibilidades e limitações de aprendizado.

Não me debruçarei aqui sobre essas teorias, mas só para lembrar e citar esse conhecimento que há muito já faz parte da cultura de nosso século. A psicanálise trouxe para o nosso conhecimento, que o fundante de uma relação do sujeito com a vida, vem de seus relacionamentos da mais tenra infância. Então penso que a relação da mãe com seu bebê dará a estrutura principal da criança ver o mundo e interpretá-lo. Mais adiante em seu desenvolvimento, o indivíduo será influenciado pela relação com o pai, com a sexualidade a ser delineada com a repressão que se instala sob a égide do complexo de Édipo e suas constelações, que constituirão o arcabouço para a entrada na relação com o outro, com o social, com a leitura e suas influências.

Essas influências posteriores continuam a dar forma e estrutura a esse ser humano, alargando ou não sua interpretação e leitura do mundo, dando continuidade a sua formação pela vida afora. É bom também que se esclareça que depois dessas figuras parentais principais, isto é pai, mãe, as outras pessoas, como por exemplo, os professores, iniciadores ou continuadores, irão se superpor às primeiras influências. Aí teremos o papel fundamental dos iniciadores, professores, dos continuadores fortalecendo um bom vínculo com o mundo já feito ou acrescentando novos traumas à vida daquele ser em formação contínua. Portanto o papel dos professores, do resto da família, da escola, ocupa um lugar preponderante na formação desse leitor de mundo e de livros, assim como a cultura em volta, toda a mídia com seus meios propiciadores ou não.

A história

Minha trajetória de leitura foi inaugurada pela presença do meu pai. Assim, fortalecendo minha crença de que a transmissão de conhecimento é principalmente afetiva. E dessa forma, com ele aprendi a gostar de ler e como conseqüência a escrever e tornar-me hoje o que sou. Meu pai colocava-me para dormir e me embalava contando histórias da bíblia. E contava de um jeito tão interessante, assim, sem o caráter religioso propriamente dito. Eram como se fossem fábulas, crônicas cheias de humor, alegria, delicadeza e a percepção do emocional dos seres humanos. Ouvi por muitas e muitas vezes sem me cansar as histórias de José e seus irmãos, O rei Davi, o rei Salomão onde meu pai detalhava os sentimentos de inveja dos irmãos, a tentação da traição, a paixão, a sabedoria e o não preconceito, respectivamente. Acrescidos a esse alargamento da percepção do mundo dado pelo meu pai, minha mãe era muito musical e minha casa era mobiliada de música.

Isto contribuiu para criar um estado de encantaria dentro de mim e praticamente vivi parte de minha infância sob este estado entre o devaneio e a realidade. Acredito que esse “faz de conta”, esse “entre”, contribuiu muito para a minha criatividade poética, meu pensamento em imagens e minhas associações livres, próprias de um estado de criação quando escrevo poesia ou quando trabalho em meu consultório de psicanálise. Assim as outras artes como a música e o ballet que comecei a aprender desde muito cedo, contribuíram para minha formação de leitora. Lembro-me que vinha do subúrbio, onde eu morei até os 12 anos, para aprender ballet em Copacabana. Esse caminho era como se eu fosse uma flaneuse a observar as pessoas no trem e depois nos ônibus e nas ruas em Copacabana. Neste trajeto, eu aos quatro ou cinco anos estava aprendendo a ler e lia todos os néons através das janelas dos ônibus, as propagandas espalhadas nos outdoors e tudo o que havia de letra e palavras à minha frente.

Dessa forma, observei que o que eu lia fazia sentido no nome que as pessoas davam às coisas. Tinha uma sensação de pertencer, de falar a mesma língua e uma sensação de prazer pelo poder de comunicar o que eu sentia e todo mundo poder compreender. Ao juntar as sílabas, as palavras que eu ia lendo, me surpreendiam, ao mesmo tempo em que aguçavam minha percepção do que acontecia ao meu redor, e a maneira como elas davam sentimentos e sentidos ao mundo. Além disso, vez por outra alguma palavra permanecia em minha mente como um jogo lúdico de mistério e musicalidade. Por exemplo, paralelepípedo, inconstitucionalissimamente. E outras palavras mais comuns, mas que se tornavam intrigantes, pela repetição sem fim delas e a percepção de uma certa autonomia em relação ao que significavam. Por exemplo, ao falar mesa, mesa, inúmeras vezes, essa mesa falada já não era como a primeira da significação do objeto mesa. Neste momento parecia que havia percebido a arbitrariedade do signo lingüístico e principalmente a música e o ritmo das palavras.

Desde o início de meu aprendizado de leitura no curso primário, as palavras logo se apresentaram como brinquedos para mim. Repeti-las até desprenderem-se delas o significado transformando-as em sons, músicas, assim como em imagens que bailavam fazendo coreografias. Mais tarde no vestibular de medicina, onde a Química e a Física eram novidades para mim, as fórmulas eram dançarinas e realizavam em meus sonhos verdadeiros ballets. Lembro-me quando vínhamos do subúrbio para a casa de minha avó em Copacabana passar os finais de semana. Na praia, uma das minhas brincadeiras favoritas era escrever com um pauzinho de picolé perdido na areia, letras e palavras recém aprendidas na escola e vê-las apagarem-se levadas pelas ondas do mar. Era como se os lápis, as borrachas, as palavras estivessem no mundo, na natureza ao meu redor e tudo se transformava em leitura e escrita e minha maneira de conhecer o mundo.Mais que a escola, o mundo, a natureza, as pessoas sempre foram os meus livros.

A escola era completamente incluída em minha vida de brincadeiras. Com minhas bonecas me transformava em professora, e as ensinava a ler e escrever em meu pequeno quadro negro que pedi de presente aos cinco anos de idade para meus pais. Talvez esse meu primeiro gostar esteja relacionado a uma boa professora no primário que por hipótese, foi um pouco substituta de minha mãe. Aquela que me dava muito atenção e me permitia ser como ela em minha fantasia.
Na infância os livros nas estantes de minha casa eram encadernados, a maioria livros de rezas de meu pai cheios de mistério, com cheiro de guardado, alguns muito antigos com folhas já meio amareladas, escritos em hebraico que suscitava enorme curiosidade e ao mesmo tempo medo.
Outros livros eram coleções também encadernadas como, por exemplo, “O mundo da criança” e Monteiro Lobato, que li várias vezes. “No mundo da criança” adorava as ilustrações que me faziam sonhar com outros lugares possíveis e muitas vezes desejei entrar por dentro dos livros e usufruir todas aquelas paisagens desenhadas.

Além de serem livros esteticamente bonitos, traziam para mim sempre algum ensinamento, de certa forma dando continuidade às histórias contadas pelo meu pai. Gostava muito também de revista em quadrinhos e a banca de jornal na esquina de minha casa era um pouco minha Disneylândia. A primeira biblioteca que conheci era de minha escola onde tive a oportunidade de ler praticamente todos os livros de Contos de Fadas, enquanto os indicados em sala de aula pelos professores, eram considerados por mim muito maçantes. A palavra para mim sempre esteve associada às imagens e não gostava de ler livros com letras pequenas sem ilustrações. A influência de indicação de leitura de livros continuava a ser, até o início de minha adolescência, minha família.

Minha irmã que me indicou um autor chamado A.J. Cronin que era um médico que descrevia seus casos e tramas de pacientes. Fiquei praticamente viciada nessas leituras e na biblioteca do IBEU, onde estudava inglês, peguei emprestado tudo que estava disponível desse autor. Nesta biblioteca maior que de minha escola, pedia muitas vezes à bibliotecária que me indicasse algum livro que ela achasse bom. Não queria ficar longe dali. Parecia que aquele lugar cheio de livros teria por detrás das estantes abarrotadas, pessoas que tinham sentido, escrito, vivido a vida antes de mim e me fazia sentir que estava para sempre bem acompanhada. Até hoje quando entro em alguma biblioteca ou livraria tenho a sensação de um lugar muito cheio de gente e de conversas. Lembro-me de meu pai falando muitos nomes de sábios que eu não conhecia. Falava num sujeito chamado Freud, declamava poemas de Garcia Lorca, de inventores, descobridores, que mais tarde os reconheci na carreira que acabei escolhendo. Os deveres de casa, as pesquisas pedidas pelos professores de escola, me encaminharam para as enciclopédias onde pude tomar contato superficialmente pelo menos com uma grande variedade de temas. Num certo momento comecei a escolher minhas próprias leituras e o livro que mais me marcou neste período foi “Sidarta”, de Herman Hesse.

Foi como se tivesse aberto um clarão na minha vida, e as noções de silêncio, percepção, destino, sabedoria se infiltraram em meus pensamentos e preocupações. O resto de minha adolescência foi encaminhado para a escolha de uma profissão e passei a não ler mais literatura e simplesmente estudar para o vestibular de medicina. Minha formação médica e mais tarde psicanalítica me tomou tão completamente e meu tempo de leitura voltou-se praticamente para leituras técnicas. Passei longos dez anos assim. Aos quarenta anos de idade a poesia foi me procurar. E numa madrugada sem poder pegar no sono porque palavras dançavam em minha mente, fui até a mesa de trabalho e comecei, não, recomecei a escrever poesia. Digo recomecei porque na infância já escrevia. Só que não me lembrava. Ganhei um concurso de redação sobre o dia das mães de toda a escola aos 8 anos de idade, e no dia de ser premiada minha mãe não estava na platéia. Por todos esses anos bloqueei esse meu talento. De alguma forma, justificando a experiência traumática que pode ter as relações familiares formadoras. Embora mais tarde pude compreender a sua impossibilidade. Ela trabalhava muito arduamente naquela época.
Aos quarenta anos, nessa madrugada a poesia mais uma vez revelou-se para mim e nunca mais me deixou. A partir daí, o que faltava era um reconhecimento dessa minha identidade por mim e pela comunidade à minha volta. Entrei em concursos de poesia, quase repetindo um pouco o concurso que aconteceu em minha infância, só que desta vez, a presença, e o reconhecimento dos orientadores e novos amigos poetas que comecei a reconhecer e freqüentar aconteceu. Essa comunidade artística me deu todo o apoio e reconhecimento. E com ela participei de muitos recitais de poesia em bares e livrarias da cidade do Rio de Janeiro, fazendo parte do movimento poético muito forte que se instalou aqui desde os anos 90. Com minha atividade de poeta comecei a publicar livros. Hoje tenho quatro livros publicados e assim acompanho a edição e publicação deles.

Além do cheiro de papel, a tinta, o ambiente da gráfica que me entorpeciam, toda essa atividade artística reproduziu e trouxe para a minha atualidade um pouco de minha maneira de viver e o meu sentir da infância. Isto é, a artista que já era nos meus tenros anos. Mas que só pôde reaparecer e viver com o contato de outros poetas, por exemplo nas oficinas de poesia da Biblioteca Nacional e os que eu comecei a ler e me identificar, por exemplo, Drummond, Cecília Meirelles, Whittman, Sheakesperare, etc. Posso dizer é que a comunidade artística e as leituras que adquiri mais tarde me reencaminharam para aquilo que sempre havia sido e influenciada pelos meus pais e o ambiente da minha infância. Reapareceram em minha lembrança, os cheiros, as capas duras dos livros que manuseava na infância, e todo o prazer que circulava em contato com esse material que passou a fazer parte permanente de minha vida.

Rosália Milsztajn
Rio de janeiro, 4 de outubro de 2006.

Home

3 comentários:

  1. Rosália, desejo que o dia do lançamento do livro seja de muita alegria e realização para você. Beijos
    Ruth

    ResponderExcluir
  2. Rosália.
    Ainda não nos conhecemos pessoalmente - desejo que esse momento chegue.
    Me permita essa vontade de conhecer um pouco sobre você, o que me fez buscar suas palavras aqui nesse seu cantinho.
    Eu mesma sou amante da expressão - verbalizada ou não - como em meu próprio blog pessoal eu compartilho - http://palavras-vivas-palavras.blogspot.com - são entre palavras escritas, sentidas, visuais, ouvidas, lidas, faladas, pensadas, que eu me permito SENTIR. rs...
    Enfim... Prazer em conhecê-la - virtualmente; e em breve, assim aguardo, re-conhecê-la.

    Sorrisos + sorrisos,

    Ursula Jahara**

    ResponderExcluir
  3. sergio jacques mehl25 de maio de 2010 às 09:53

    Rosália,
    Fiquei muito impressionado com a sua entrevista na Comunidade na TV, relatando detalhes do seu livro A História dos Seios. Recordo de uma menina que conhecí no Hashomer, há muito tempo atras, que também se chamava Rosália. Seria você ? Acho que já nos conhecemos desde essa época, mas espero que um dia possamos nos reencontrar. Impressionante como o nosso mundo ficou pequenininho de repente, não é mesmo ? Vou comprar o seu livro, ler cuidadosamente e depois postar um comentário. Até breve. Sergio Jacques Mehl.

    ResponderExcluir