Dicção feminina em busca de poesia

por Andre Gardel

A poesia de voz feminina na literatura brasileira vem se expandido de modo surpreendente nas últimas décadas. Hoje em dia, se quisermos fazer, ao sabor da memória, um rápido levantamento, já podemos montar um bom time de poetas que qualificam essa sutil e polêmica variação timbrística de gênero da linguagem poética: Lélia Coelho Frota, Adélia Prado, Olga Savary, Ana Cristina César, Leila Miccolis, Alice Ruiz, Cláudia Roquette-Pinto, Lu Menezes, Elisa Lucinda, Helena Ortiz, Thereza Christina Rocque da Motta...Contudo, mais do que uma possível equivalência quantitativa ou qualitativa com a produção masculina, é importante ressaltar que a afirmação de dicções femininas no cenário contemporâneo trouxe a reboque, com o auxílio dos estudos culturais e do pensamento off canone, disseminados entre nós por volta dos anos 90, o interesse pelas vozes que concebem seus discursos a partir de lugares de fala étnicos, religiosos, dos excluídos por questões sócio-econômicas e sexuais.

A poesia de Rosália Milsztajn pode ser pensada na confluência de duas dessas tendências: uma voz a um só tempo feminina e judia. Mas o que poderia ser mais do que uma delimitação religiosa e de gênero, uma limitação temática e estilística, ou pior, uma não problematização de questões como valor literário ou enfrentamento poético da tragédia da existência, críticas a que estão sujeitas as obras que surgem sob o viés culturalista nos dias de hoje, na produção de Rosália assume contornos bem mais instigantes. Primeiro porque ser judia e ser mulher, temas recorrentes no fluxo semântico dos seus poemas, aparecem como figurações de uma sensibilidade estruturada de modo multiforme, se construindo nos limites do humano e da linguagem; depois, porque em nenhum momento temos a sensação de estarmos diante de uma produção panfletária ou politicamente correta, mas sim diante de uma obra, acima de tudo, poética.

É o que podemos comprovar no quarto livro da psicanalista e poeta, Aqui dentro de mim, recém lançado pela editora Aeroplano. Mas houve uma trajetória específica para que a autora pudesse chegar até esta poesia mais densa, que não dispensa o trabalho artesanal com as palavras nem o transbordamento vital. Depois da estréia com No azul (1991), em que as linhas básicas de sua poesia ainda estão sendo esboçadas; da afirmação da condição judaica com Itgadal, memória dos ausentes (1996) e das iluminações lúdicas, eróticas, dramáticas de Luminosidades (1999); só agora podemos apreender de modo nítido o movimento de alguns dos pares opositivos que compõem as cenas de sua poética: o estranhamento entre o movimento geral da cidade e o movimento subjetivo interno; a oscilação pendular entre as tonalidades trágico-sublimes e o ludismo pop; o dilaceramento da dor da separação e a aprendizagem da solidão não ansiosa; a textura fônica e semântica ora ríspida ora sutil na construção de linguagem correspondendo às performances da mulher delicada e da mulher fera; a poesia como fenômeno religioso, sagrado e como gracejo fugaz modernista; entre outros.

Todo esse jogo de espelhos invertidos só é possível, principalmente, pela opção da autora em estruturar Aqui dentro de mim a partir do espaço de um lugar de fala, e não de uma conceituação geral, o que acarreta na produção de um livro-álbum romântico, sem se prender a uma unidade temática (embora alguns fluxos de sentido dialoguem ao longo da multiplicidade de poemas dispostos), ao invés do livro-conceito clássico. Com isso, o mundo é visto de dentro, reverbera dentro de uma subjetividade que adquire contornos ora expressionistas (como no belo libelo ecológico Desazuis: “Sangra o céu/ Com o estupro dos homens/ A violência cega/ Irrompe em desazuis”), ora do cancioneiro de amigo com leve trava de amargura moderna (em As flores de lótus: “Sussurram as flores de lótus ao entardecer.../...falam, eu sei/ Por algum sentido de pétala que tenho/ Ou um sentido humano que possuem”), ora de denúncia e estranhamento neoconcretos (em Rio ensolarada: “Sol/ e/ solidão/ é o que sabe fazer esta cidade.../ cegando aos favorecidos e aos mendigos/ apodrecidos nas ruas que apodrecem...). Espaço de dentro que é também local em que é gerada a criação poética, de dentro da linguagem-mulher: “recriando meu ventre/ de verbo e palavras”, alimentada pelo silêncio e pela reflexão, provedores da palavra: “Aqui, bem aqui/ Onde é leite meu pensamento/ Entrego o seio/ À palavra”.

E é essa mesma voz subjetiva que se permite sofrer interferências de várias procedências existenciais e estéticas que acaba por gerar uma certa irregularidade de invenção nos poemas do livro; o que não é de se estranhar numa poesia que nasce das zonas obscuras e impalpáveis do que ecoa por dentro... No entanto, essa oscilação abrupta entre o clichê não reciclado, a verdadeira criação poética e a competência e desempenho lingüísticos, vem se mostrando um procedimento muito comum na produção poética pós-moderna que se aventura pela horizontalidade de mapear vários padrões estilísticos, abandonando e implodindo em fragmentos dispersos as idéias de totalidade e profundidade. Em Aqui dentro de mim, essa tendência se entremostra na maior parte das vezes em que a autora resolve passear pela cultura pop, pelo micropoema ou quando força a nota do humor. Nada disso, porém, apaga as muitas estrelas e jatos de luz que podemos vislumbrar no céu interno do rico universo poético de Rosália Milsztajn.

*Resenha publicada no caderno Idéias do Jornal do Brasil em 24 de janeiro de 2004.

Home

Nenhum comentário:

Postar um comentário